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PILOTO AUTOMÁTICO

Dona rotina prende-nos calmamente a um sistema e oferece-nos de graça a viagem no conforto do piloto automático. As portas estão por abrir. Um feriado novo – aquele dia em que fomos para as ruas de balança às costas e dissemos que o respeito estava á espera no Olimpo. Aquele dia em que a justiça se fez clara, translúcida de peixes coloridos. Escolher é preciso.

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PILOTO AUTOMÁTICO

Sofia Teixeira

"só o que se move a si mesmo, como nunca é abandonado por si mesmo, nunca pára de se mover "


(Cícero: República VI)

Acordar, composição Tiago Baptista

Naquele dia em que adormeceste, os primeiros algoritmos do céu receberam o teu olhar confuso com os tons violentos de toranja com rosa que sempre enchem as manhãs quando alguém serve o pequeno-almoço na cama a Vénus. Às vezes, os sistemas de recomendação têm disso: juntam no mesmo copo realidades bem opostas e deixam passar a efervescência inicial até obter uma mistura de complacente coisa nenhuma.

            Hidrogénio e oxigénio e ibuprofeno. Belo dia. Bebeste tudo. A dor de cabeça, mais pesada que a paixão de Vénus, permaneceu latejando sob um céu agora azul. Talvez à Deusa alguém tenha cometido imprudência de sugerir Sunquick pelo acordar e a salubridade da mistura de xarope com água tenha feito diluir a magia daquele amanhecer. E tu ficaste sozinho, aguentando a sensação do peso da roupa ensopada em sangue, da dor nas mãos e nos pés, da suspeita de ter estrangulado e pisado durante muitas horas, para cima de oito a multiplicar por sabe-se lá quantos dias.

            O despertador tocou, por momentos deixaste de ver os glóbulos brancos e vermelhos e o plasma. Correste a desligá-lo, irritado ao vê-lo fazer exatamente aquilo para que por ti mesmo fora programado.

            A tua cama olhava imaculada para ti; cada camada de tecido esticada no seu devido lugar. Nada da desordem do corpo daquele homem que mataste

sem sequer te aperceberes. Os lençóis não estavam à vista, tal como o sangue dos homens também não deveria nunca ficar à vista – e, por isso, nunca se vê.

            Se a insónia faz ver até quem é cego, devemos começar a recomendá-la também aos mortos.

Assear-se composição Inês Lopes, poesia Renato Filipe Cardoso



O ruído dos automóveis lá fora atestou o potencial produtivo daquele dia e o teu coração aqueceu ligeiramente, como se ouvisse salmos de salvação.

            Borrifaste perfume sobre ti como quem se veste de camuflado. Embora continuasses dominado de um estranho transe, os teus braços pareciam roldanas, plenamente cientes daquilo que era suposto fazer.

            Estavas a apertar a gravata num perfeito monumento aos tentáculos do poder quando viste no chão papel e caneta, onde constava a constatação da epifania que te assaltara nessa noite. Antes fosse uma arma – aí terias a opção de não a usar. Guardaste as letras contidas naquele papel no bolso do casaco por mera formalidade. Se sentisses a necessidade de reler o seu conteúdo serias novamente um homem feliz, e terias a opção de o rasgar.

Tomar o pequeno almoço, composição Pedro Jerónimo, poesia Mário de Sá Carneiro

Daqui até ali há muitas regras a cumprir. Paraste na luz vermelha dos semáforos e só excedeste um bocadinho o limite de velocidade por duas vezes. Tanto uma coisa como outra funcionam como óleo na tua engrenagem: obedecer e desobedecer são como alcatrão que acelera a consciência tornando-a alternativa: ou um ou zero. Pela CREP é mais rápido.

            Chegaste ao café do costume um minuto antes do normal e tiveste de esperar sessenta anómalos segundos a mais para receber o teu café e a tua torrada.

            -Cuidado que queima, disse a empregada do café quando lhe tiraste a chávena das mãos.

            A Maria era uma mulher muito bonita. Continua a ser, aliás. Mas não conseguias deixar de desdenhar um bocadinho esta mania de te advertir sobre a temperatura das coisas. Coitada, ela nunca teve como saber. A Maria tinha sido deixada de fora na corrida da produtividade e criação de valor. Passava ali o dia, a servir coisas efémeras às pessoas e a comentar o quente desta chávena ou a chuva que prometem para hoje. Não trazia às costas os arcabouços da responsabilidade do progresso e por isso é que de cada vez que regressava ao balcão era impossível não olhar para as costas dela, tentadoras como uma cama por desfazer.

            -Eu tenho os poros queimados, não sinto.

            Ela ficou a olhar para ti, inquisidora.

            -A mim também me acontece às vezes. Saiba que tem dias que quero desbloquear o telemóvel e nem ele reconhece o meu toque.

            E Maria deu de costas, caminhando viva como sangue na direção do botão da televisão que tinha de pressionar para todos ficarem a par da meteorologia.

Notícias, composição Gabriela Couto, poesia Eduardo Leal

Todas as manhãs era assim. A televisão ligava-se mas tu ficavas a olhar para Maria, adormecendo todo nela. Acordavas quando ela desaparecia pela cozinha e logo dentro da tua cabeça soprava uma voz metálica censurando a alienação: Para vossa segurança pedimos o favor de não forçar as portas.

            Maria não era como nenhuma mulher que tivesses conhecido antes. Ela provavelmente não saberia fazer o nó de uma gravata, e isso é uma incompatibilidade muito séria. E, para mais, não usava relógio. Maria era de uma espécie completamente diversa da tua - tinha no pulso uma conchinha da praia e na pele um aroma inconstante de felicidade.

            Olhaste para a televisão e engoliste o café depressa. Mostravam filmagens de um sítio onde nunca tinhas estado, onde morreram centenas de pessoas que nunca conheceste. No rodapé do jornal leste o teu nome. Nada do nostálgico faroeste; não se lia em nenhum lado «procura-se». Antes dissesse. Mas, e depois? iguais a ti são tantos.

Esfregaste os olhos, incrédulo. Como se nada tivesse acontecido, a televisão mudou de assunto, de volta à narrativa que importa: os impostos da Maria iam subir – o que é ótimo, porque assim podiam ambos passar mais tempo no café.

            Maria passou na tua mesa para recolher a louça suja e pediste-lhe se por favor não teria por ali um ibuprofeno que a dor de cabeça misteriosamente voltara e tinhas a todo o custo de ir trabalhar.

            -Bem o entendo. A gente nunca pode deixar de trabalhar mesmo que lhe dê uma doença e que tenha passado a vida no emprego. É no que dá ser pobre.

            Ser pobre?

            Para mais ainda, Maria estava longe de perceber a voluptuosidade do mérito.


Deslocar-se composição Catarina Ribeiro, poesia Francisca Camelo

Entraste no teu carro e meteste pedal a fundo, sem pensar que podias matar mais alguém nessa tua necessidade mista de fugir de tudo e de te dares ao teu trabalho. Mas as estradas estavam diferentes naquele dia e foste engolido pelo som do mar, onde o teu carro acabou por parar. Ao contrário de ti, que não descansaste naquela noite, os automóveis precisam mesmo de energia para se deslocar. Ainda insististe uma ou duas vezes com aquela estrutura de metal normalmente tão fiel a ti, mas tinhas acabado de ser abandonado na praia, tão longe do teu posto de trabalho.

Saíste para a rua e atiraste-te para a areia de sapatos de verniz, calças de vinco, camisa e gravata. O casaco, rogaste-lhe pragas porque ficou esquecido no café. Seguiste em paralelo com o mar, cujo trajeto regular, sempre em frente, te traz a tranquilidade de uma autoestrada. Os passos ficaram marcados na areia com uma regularidade de metrónomo ou de homem atrasado para o emprego. A dado momento, porém, as pegadas lançam dúvidas sobre a tua natureza. Quando viste um búzio, à tua esquerda, afastaste-te do mar para o alcançar e, num instinto digno de qualquer relicário da existência humana, parando, levaste-o ao ouvido.

            Embora não tivesses a certeza acerca daquilo que esperavas ouvir, foste surpreendido por um tic-tac de relógio e o teu corpo, já nas reservas do gasóleo, deixou-se cair na areia, sob um céu cinzento carregado de acaso.

            Hoje é capaz de chover.

Escolher, composição Zé Stark

Ali caído, a tua mente cometeu o abuso derradeiro de usar as reservas de energia vital para se presentear num stand-by vagabundo por um mundo qualquer entre o um e o zero.

            Faltam burocratas nas portas dos sonhos. Não houve ninguém que te atendesse na receção desse outro mundo, ninguém que te emprestasse uma caneta e dissesse assine aqui aqui e aqui. Nada naquele dia seguiu conforme o teu consentimento - teria sido um dia exatamente igual aos outros, se não fosse por teres reparado nele coisas invisíveis ainda ontem.

            Viste-te de repente numa civilização construída unicamente da areia da praia. Impressionaram-te seis pirâmides colossais e quiseste fazer mais e melhor. Construíste então uma pirâmide maior do que as outras todas e virada ao contrário. Vestiste fato de gala e foste à inauguração, onde Maria te esperava dentro de um vestido de costas abertas e segurando o teu casaco de cerimónia debaixo do braço.

            Jantaram os dois um jantar muito romântico no último andar da pirâmide, com vista para o mundo todo. Estava calor e a pele de ambos transpirava óleo. Descobriram, lendo a embalagem original de um e de outro, que eram compatíveis. Decidiram patentear a junção daqueles dois mecanismos - o que, primeiro, assustou os vizinhos, depois fez tremer toda a cidade e, por fim, destruiu todas as pirâmides. Inicialmente, ainda passaste os teus polegares pelas costas dela, para cima e para baixo. Ao ver de perto poros e células, mordeste a maçã final da tua renúncia humana e transformaste-te em vibrador enquanto as autoridades vos retiravam dos escombros.  

Trabalhar, composição Sara Santos Ribeiro, poesia Helena Homem de Melo


-Maria, fica a tomar conta disto. Vou ali comprar o passe e já volto.

            -Renove a sua assinatura hoje, evite filas.

            -Disseste alguma coisa, Maria?

            -Sim, disse que fico a tomar conta.

Maria adorava o fim do mês quando, poucos dias depois de o ordenado pousar, com a elegância que as pessoas muito leves têm ao cair, na sua conta, a patroa a deixava ficar sozinha no café durante as horas em que se punha na fila das lojas do metro para comprar o bilhete mensal dos transportes, porque tinha fobia das máquinas automáticas. A empregada de mesa sentia um arrepio na espinha sempre que se permitia fingir ser dona da sua vida num todo, sem ter de tomar constantemente a escolha entre ter fome ou ter sono. Ouvia dizer muitas vezes que a forma de concretizar esse seu sonho era tomar a corajosa decisão de ter fome e sono e já admitira, muito humilde, que não funcionara consigo por falta de vontade.

Tu sempre lhe causaste uma impressão singular, sentado todas as manhãs à mesma hora no mesmo sítio a tomar o mesmo pequeno almoço – mas sempre com ar de quem tem o rei na barriga. Maria sempre quis sentar-se contigo à mesa, fazer perguntas, mas nunca ousou.

Lá fora começou a chover aquela chuva que nos faz achar que não andam pessoas na rua. Maria deixou-se convencer pela ideia de que ninguém ia aparecer e vestiu o teu casaco por mera fantasia. Mexeu-se dentro dele, sentiu o toque do tecido e remexeu os bolsos.

Que bela caligrafia de homem gentil, para escrever à mão só pode ser ficcionista, pensou antes de ler, na ata da tua aparição, que concluíste sentires ter vivido a tua vida para causar a morte a muitos homens, alguns já mortos, outros ainda por nascer.

Comprar, composição Catarina Rodrigues, poesia Machado de Assis

Acordaste com a chuva a bater na cara e fugiste da praia, onde o mar por pouco não engoliu o teu corpo desmaiado. Quando puseste os pés no civilizado alcatrão, viste as pessoas alinhadas em duas filas sem fim e logo soubeste que a coisa certa a fazer era ir para o fim da fila, para evitar que alguém mais se metesse à tua frente. Era impossível saber onde levava cada uma das linhas de dominó humano, então escolheste ir para a direita. Mantenha-se à direita, faz bem à circulação.

            Maria estava há vinte e quatro minutos e cinquenta e nove segundos na fila da esquerda, esperando encontrar a patroa, para lhe contar que o homem sem poros era um assassino de massas. Arrependeu-se rapidamente de ter escolhido aquela fila e não a outra, que estava a avançar muito mais depressa.

            Foi então que vocês se encontraram, na reclusão da ordem de chegada.

            - Eu cheguei primeiro, isto não é justo!, protestou ela.

            - Esta fila é para quê? – perguntaste tu.

            - Para fazer denúncias – disse ela

            - Para comprar o passe – disse Alguém - Para trabalhar. Para morrer. Esta fila é a única maneira que quem está nesta fila tem de andar.

            Chamaste Maria por cima das vozes de Alguém que vinham de toda a parte e tentaste marcar um encontro com ela. A empregada de café estava cheia de boa vontade mas trabalha todos os dias até tarde e não tem folgas e tu fazes golfe aos fins de semana.

            Ficaram os dois na fila. A aguardar. Maria disse que poderia amar-te eternamente se não estivesse ocupada a pensar na renda para pagar. Depois os médicos vieram prender-te e tanto quanto sabemos de Maria é que ficou na fila, a juntar dinheiro para a renda desse mês, e para o seguinte, aguardando pela folga, sonhando ter o tempo para um beijo apressado - fantasiando ter fome e ter sono mas fugir da fila.

Cozinhar, composição Sara Santos Ribeiro, poesia Ana Luísa Abreu

Passaram-se duas semanas.

                Desde quê?

                Desde que adormeceste,

dizem

Diz quem?

Alguém


Nunca mais foste capaz de ir trabalhar, ou de falar do tempo, sequer de cumprir o dever que se impõe a cada cidadão no ato de ver netflix. Todo o ibuprofeno do mundo não te faria acordar. Os bonecos de corda do pós-modernismo acabam no lixo, não vale a pena tentar voltar a pô-los a andar. Toda a alma é pequena. Uma vez parando de tocar os pratos, a marcha suspensa, os autómatos, salvas as virtuosas exceções, tomam contacto com organismos letais e ficam para todo o sempre adormecidos.


Devias era ir viver para a rua

Nem debaixo da ponte devias poder abrigar-te, mandrião


Agora que perceberam que tu e eu nos encontrámos fecharam-te num hospital psiquiátrico.


                                                                                               Vai mas é trabalhar


Subo-te ao cérebro como uma droga, por mais comprimidos que engulas.

A culpa era para morrer solteira. Disseste que tanta gente morreu à tua custa.

Louco.

Um crime perfeito é impossível, e ousas reclamar a perfeição de centenas?

Cala-te.

Mas então quem os matou?


Ninguém: a perfeição dos crimes faz-se na nossa marcha e ao bater dos pratos, só nessa canção de embalar está a sociedade. Acordar é morrer – quem te diz morto não passa noites sem dormir.



                                                                                                                                              Atenciosamente,

                                                                                                                                              A tua alma

Adormecer, composição Nuno Ferreira

Piloto Automático: Título

Ilustração | Luís Romano

Texto de conexão | Sofia Teixeira

Poesia | Renato Filipe Cardoso, Eduardo Leal, Ana Luísa Abreu, Helena Homem de Melo, Francisca Camelo, Machado de Assis, Mário de Sá Carneiro

Composição | Nuno Ferreira, Tiago Baptista, Pedro Jerónimo, Inês Lopes, Catarina Ribeiro, Sara Santos Ribeiro, Zé Stark, Catarina Rodrigues, Gabriela Couto

Voz | Fátima Serro, Gabriela Couto, Catarina Ribeiro, Renato Filipe Cardoso

Trompete | Pedro Jerónimo

Saxofone Tenor | Pedro Matos

Trombone | André Ramalhais

Vibrafone | Tiago Baptista

Piano | Catarina Rodrigues

Contrabaixo | Sara Santos Ribeiro

Bateria | Zé Stark

Piloto Automático: Citação
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