Era de madrugada. O frio do fundo da noite subia agora em direção ao espaço, levantando suspeitas a respeito da manhã que havia de chegar. Júlia estava exausta, as meias rotas – já era costume. Precisava de uns sapatos novos – pensou. A padaria já devia estar aberta. Pois, o padeiro também se deitou tarde hoje – pensou Júlia – tinha sido o seu terceiro cliente.
AS MULHERES DO OUTRO MUNDO
POESIA Renato Filipe Cardoso | COMPOSIÇÃO Sara Santos Ribeiro | VOZ Sérgio Silva
Na rua das mulheres
as mulheres da rua
transaccionam o corpo como fénixes
até não mais lhes restar fogo.
Quando interpelam por lume
é por lhes restar só cinza
para voltarem a ser mulheres da lua
na lua das mulheres.
As mulheres da rua
são mulheres da lua
apascentam sonhos infecto-contagiosos
amores de ficção científica.
Repuxam as saias espaciais
esticam o solavanco das meias
onde vivem enganadas
por foguetões de vida difícil.
Do outro lado do mundo anoitecia por sua vez. Jusuf arrastava os cartões á procura de um lugar para passar a noite. Olha – foi mesmo ali, á porta da fábrica de sapatilhas que ficava a manufaturar all night long. O barulho das máquinas distraiam Jusuf da fome e funcionavam como uma espécie de mecanismo hipnótico que em poucos minutos o fizeram adormecer e acreditar que pousava a cabeça numa flor. Uma Raflésia! a maior flor do mundo. Era um pesadelo! – cheirava a carne podre, é assim que cheiram as Raflésias conhecidas por flores-monstro. Mas no seu sonho, como se tratava da maior flor do mundo, sentiu-se subjugado, correu para buscar àgua a mando da flor parasita. Quando reparou levava Saramago sentado num ombro que parecia estar psicótico. Corria, corria, corria por entre as gargalhadas delinquentes de um Saramago enlouquecido mas no seu sonho não conseguia alcançar o rio que estava mesmo ali á vista….
A MÚSICA DO COSMOS
POESIA Eduardo Leal | COMPOSIÇÃO Sara Santos Ribeiro | VOZ Sérgio Silva
procurava conforto e equilíbrio
na tua matemática, pitágoras
vi a linha mais curta entre dois pontos
quebrando a lógica do teu teorema
resisti à pulsão da hipotenusa
risquei catetos longos, improváveis
opondo ao teu peito toda a pressa
resisti à pulsão da hipotenusa
mas apesar do esforço realizado
vi um sorriso rasgado na boca
caverna com odor a sopas quentes
pois é tão fácil ver o ainda fácil
vi um sorriso rasgado na boca
povoada pela comunhão dos pobres
dentes desalinhados, amarelos
negros, brancos, memórias de outros tempos
em que comer foi ritual diário
dentes desalinhados, amarelos
mastigar indolor e sem ausências
gesto possível na harmonia cósmica
pão dividido agora imaginário
casa a céu aberto e sem ter luz
gesto possível na harmonia cósmica
e não esta música sincopada
e cínico saborear dos restos
escondidos nos buracos do que sobra
dos teus dentes que ainda resistem
percebes agora, velho Pitágoras
para que nos serve a matemática?
Depois de um belo banho, Júlia deitou-se no sofá. Enquanto fazia planos - quando acordar vou à sapataria - caiu no sono, mesmo que a manhã já chamasse nas janelas. Sonhava que tinha barbatanas. Isso – nadava com mil peixes num rio azul esmeralda. Nadava mais depressa que eles e ainda tinha tempo de vir à superfície congratular-se em piruetas virtuosas, dignas de impressionar os salpicos. Algo a fez parar. Um homem ao fundo da margem, aflito, corria mas não saia do sitio. Júlia queria ajudar, mas não tinha pernas para sair do rio. Julia sabia que era um sonho e forçava a cabeça a criar-lhe pernas. Vá lá – eu sei que isto é um sonho - tenho que ajudar aquele homem – parece-me nú! Sim, por fim umas pernas – o sonho de Julia evoluiu. Julia deu à costa com pernas mas ao levantar-se descalça sentiu que o chão picava terrivelmente feito de pedras pontiagudas – Mas como?! É impossível sair daqui assim – eu sabia que tinha que comprar uns sapatos.
A MULHER QUE COMPRAVA SAPATOS
POESIA e COMPOSIÇÃO | Sara Santos Ribeiro | VOZ Inês Homem de Melo
Vivia só e devia querer fazer uma fogueira
para queimar aqueles "ses" que sonhou a noite inteira
Mas quem é que dá à dentada manivela
desta máquina que roda e repete as mesmas voltas que são dela
Quer rasos de salto ou de laços, vivia a comprar sapatos
que por serem tão bonitos pareciam dar os passos por ela
Põe-te à montra sai da janela,
esquece o armário teimoso das ilusões e vem de chinelas
Dança descalça até cair,
eu sei que tu não tens culpa, mas tens que pagar a multa de existir
Na fábrica de sapatilhas, Rose tinha acabado de chegar ao seu posto de trabalho. Consultava os projetos para saber as cores das linhas a meter nos carretos da máquina de costura. Hoje ia gaspear uns retalhos azuis e vermelhos. Tinha deixado o filho a dormir – com um pijama também azul e vermelho. E o mais engraçado é que a toalha da mesa que ficou por levantar também era azul e vermelha – pensou ela…mas tão depressa interrompe a intriga, Rose deu ás gáspeas, nunca tinha muito tempo para pensar nas cores – afinal recebe por peça.
CORES E PALAVRAS
POESIA, COMPOSIÇÃO e VOZ | Gabriela Couto
A vida é uma tela,
Onde se juntam tons de aguarela.
Consigo ver as cores a mudar,
Quando há magia pelo ar.
São cores de paixão, de amizade ou ilusão,
Cores que nos fazem recordar.
Um gesto, um sorriso pincelado de carmim,
Distante dentro da nossa memória.
A vida é uma história,
Que o poeta tem na memória.
Sem pressa, ele conta a rimar
O que nos leva a sonhar.
São letras de paixão, de amizade ou ilusão,
Letras que nos fazem recordar.
Um rosto, um sorriso carrregado de emoção,
Distante dentro da nossa memória.
A vida é uma tela,
Onde se juntam tons de aguarela.
Contando uma história de amar,
Que vamos sempre recordar.
A padaria já tinha feito 10% das receitas do dia só com os cafés da manhã. O Paulino padeiro nem teve tempo de tomar banho hoje. Foi direto das poucas horas de cama para o carro. Tinha posto o despertador à justa e dormiu assim mesmo – ainda vestido e a cheirar pouco bem. Tirou uma remela ou duas com as pontas dos dedos e bochechou a boca com um resto de água de uma garrafa que andava lá perdida no porta luvas. Tentou cheirar as axilas, não sabia se o mau cheiro vinha de lá ou do gargalo da garrafa de águas estagnadas.
Quando olhou para o retrovisor viu Carminda – que estava na paragem com a sua marmita à espera do autocarro. Linda como pão a sair do forno pensou ele – branquinha e quentinha. Paulino fica triste, cai-lhe o cabiz – repara que o tapete do carro estava todo sujo de migalhas. Tinha que arrancar. Paulino sempre quis casar-se com Carminda - claro que umas visitas à rua dos alívios iam sempre fazer parte - só de vez em quando. Júlia era a sua preferida.
CORAÇÃO DE NINGUÉM
POESIA Fernando Pessoa, com
selecção de fragmentos de Catarina Rodrigues | COMPOSIÇÃO Catarina Rodrigues | VOZ Gabriela Couto
Põe a tua mão sobre o meu cabelo
Tudo é ilusão, sonha é sabe-lo
Se existo é um erro
Eu o saber
Se acordo, parece que erro
Sinto que não sei, nada quero
Nem tenho, nem recordo
Não tenho ser nem lei
Sonho, não sei quem sou neste momento
Durno sentindo-me na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento
Lapso da consciência, entre ilusões
Fantasmas me limitam e me contêm
Dorme insciênte de alheios corações.
Silêncio. Que ninguém diga nada. Ouvem-se os rastos de sonho.
Alguém desligou as máquinas da fábrica. Um corte de luz. Jusuf acordou de súbito. E com ele Júlia. Ergeram-se de repente - ao mesmo tempo. Era só um sonho.
A NOITE ERA PEQUENA
POESIA Sara Santos Ribeiro | COMPOSIÇÃO Gabriela Couto e Sara Santos Ribeiro | VOZ Gabriela Couto
a noite foi e levou com ela
sonhos de rastro, amordaçados
arrancou-os à força para dentro, exactamente quando de manha se ergueram os homens
arranco-os e levou-os pelo caminho dentro, contrafeitos
a noite era pequena como tempo,
mas era ao mesmo tempo, grande, porque arrastava sem fadiga, coisas enormes
e os homens foram ficando pequenos
porque a noite, a cada dia, lhes foi levando o peso que os fazia maiores.
Atchim – santinho. Acho que estou constipada – disse Júlia ao porteiro à saída no prédio. Faça um chá de casca de cebola menina, é remédio santo.
RECEITA
POESIA Gisela Batista Ribeiro | COMPOSIÇÃO Sara Santos Ribeiro | VOZ Rui Spranger e Gabriela Couto
Trazer duas cebolas e deixá-las ao Sol.
Deixar temperar com o ar ameno da noite.
Mais tarde, dir-se-ia ao entardecer do terceiro dia, pegar nelas e transferi-las para o quarto.
Aí sim, abri-las e deixar perfumar o quarto.
Que ar agradável...
Terapia, aromoterapia.
Respirar fundo as primeiras baforadas da manhã.
Só depois, com elas já podres, temperar com alho – não destabilizar os aromas ácidos, nunca! – e comê-las cruas.
No fim de tudo, não lavar os dentes até passar o sabor, agridoce – podre.
Rose chegou a casa. A sua mãe já tinha arrumado a mesa e levado o pequeno Simão à escola. Rose estava mortinha por descansar. Os lençois eram azuis e o seu pijama vermelho, mas de tão cansada, Rose nem reparou. A sua mãe tinha-lhe feito a cama de lavado para quando chegasse. Rose pôs-se a sonhar que uma mulher sem sapatos salvava um homem nú que fugia de uma flor gigante – quando acordou estranhou - onde é que raio foi buscar aquilo.
NA CASA DOS AMIGOS
POESIA Eduardo Leal | COMPOSIÇÃO Sara Santos Ribeiro | VOZ Sérgio Silva
porque não é pelo sangue
nem pela força do tempo
que se explica a amizade
há outras pontes que unem
e que ligam outras margens
outros mundos partilhados
há uma razão de ser
a razão de quem escuta
chama em silêncio a palavra
há outra razão de ser
a razão de quem nos diz
sem ter na voz a censura
um amor livre da posse
espaço pleno de palavras
tantas vezes em silêncio
pois na casa dos amigos
não se vende nem se compra
nem se vence nem se perde
são os olhos que compreendem
é pelas mãos que se explica
são os olhos que se entendem
e as mãos que se confortam
vivemos dentro do peito
e vivem dentro de nós
Joaquim preocupava-se com a tristeza da Filha. Já estava na hora de casar e nada. Que achas ali do Paulino padeiro filha? parece-me bom rapaz. Carminda tinha entregue o seu coração a outro. O pai não fazia a mínima ideia e era bom que nunca soubesse. Foi o professor de matemática que morreu de acidente naquele ano. Nada mais importava para Carminda depois disso.
DOCE VOZ
POESIA, COMPOSIÇÃO e VOZ | Gabriela Couto
Doce voz, ouço murmurar
Um amor que já foi meu.
Vivido com paixão,
Unidos pela ilusão.
Doce voz do primeiro amor
Teu olhar era só meu.
Carícias sem ter fim,
Lembranças de um amor que não esqueci.
Memórias passadas,
Que revejo a sonhar.
Tu eras o meu pensamento,
Primeiro amor que não há outro igual.
Doce voz, canta para mim
Um amor que não volta.
Mas que vai ficar
Pintado em mim até ao fim.
Paulino acabou por casar com Carminda. Tinha feito amizade com o pai dela na rua dos alívios. Carminda deixou de apanhar o autocarro branquinha e quentinha e foi endurecendo, como o pão. O casamento até foi bom para o negócio da padaria. Carminda dedicou-se aos bolos.
Agora podia ler-se na montra: Paulino&Carminda, Padaria e Pastelaria.
PASTELARIA
POESIA Mário Cesariny in 'Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano' | COMPOSIÇÃO Sara Santos Ribeiro | VOZ Gabriela Couto
Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!
Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício
Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come
Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!
Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo
No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra